15.6.07

O Buda morreu cagando sangue

Do impressionante blog "O Franco-Atirador"

Quando lemos os delírios teosóficos sobre os Mestres Ascencionados da Grande Fraternidade Branca ou os desvarios de alguns membros da Golden Dawn a respeito dos Adeptos dos graus mais elevados (que McGregor Mathers especulava que nem sequer teriam um corpo físico), ficamos com a impressão errônea de que a Iluminação transforma aqueles que a atingem em algum tipo de super-heróis, dotados de poderes sobrenaturais e imunes aos sofrimentos terrenos que afligem os pobres mortais não-iluminados que somos. Incapazes de sentir qualquer emoção, impossíveis de se ferir e imunizados contra qualquer tipo de doença, os Iluminados caminhariam por este vale de sombras, etéreos e inatingíveis, ou nem sequer caminhariam por este vale de sombras e, sim, habitariam uma dimensão superior, acessível apenas àqueles que transcenderam à condição humana.


Mas o Buda morreu cagando sangue.

Ao completar oitenta anos, quatro décadas depois de atingir a iluminação à sombra de uma figueira, o Buda e seus discípulos foram recebidos na corte do rei Cunda Kammaraputta, que lhes ofereceu um jantar no qual foi servido um prato feito com carne de porco. Quando provou a comida, o Buda sentiu um gosto estranho e disse ao anfitrião que levasse a comida embora, antes que ela fizesse mal aos outros convidados. Imediatamente, começou a sentir dores atrozes. Pouco tempo depois, teve uma hemorragia no reto e morreu, se contorcendo de dor. Especulações sobre a causa da morte - se a carne de porco estava envenenada ou se o Sakyamuni já estava doente antes disso, e nesse caso qual era a doença - podem ser lidas aqui, mas o ponto não é esse.

O ponto é que o Buda morreu cagando sangue.

Não é, obviamente, um caso isolado, e isso é outra coisa que é preciso ter em mente. Krishnamurti, por exemplo, morreu de câncer, assim como Sri Ramana Maharshi - e tenho certeza de que, fazendo um levantamento de como morreram os iluminados, encontraríamos muitos outros exemplos. Por outro lado, não consigo lembrar de nenhum santo ou iluminado, mas nenhum mesmo, que tenha se transformado em energia e partido para Shambhala em um raio de luz. Para não dizer que não conheço nenhum, sempre se pode argumentar que foi o que aconteceu com o Lao-Tsé que, depois de escrever o Tao-te King, montou num burrico, atravessou a fronteira da China e nunca mais foi visto.

Já o Buda, morreu cagando sangue.

Isso é mais importante do que parece à primeira vista. Se as pessoas são atraídas por um caminho espiritual na esperança de encontrar um atalho para chegar ao céu sem ter que morrer ou como um expediente para tirar o cu da reta e escapar do sofrimento e da dor, é quase certeza que, em algum ponto do trajeto, vão dar com os burros n'água. Se não se dedicarem a esse caminho com todas as forças e o levarem na flauta, ele não fará qualquer diferença na quantidade de sofrimento que terão de enfrentar no dia-a-dia. Por outro lado, se embarcarem no trajeto para valer e se empenharem com sinceridade, o mais provável é descobrirem que, longe de afastar a dor, vão é aprofundá-la. Porém, aprofundá-la nos dois sentidos da palavra - ela talvez se torne mais intensa, mas também mais significativa. Deixa de ser um sofrimento sem propósito para se tornar parte de um processo. Da mesma forma que o ferro aquecido ao rubro é moldado entre o martelo e a bigorna, é necessário uma pressão intensa - e, na maioria das vezes, constante - para que a consciência se liberte da identificação com o ego e (re)adquira sua forma verdadeira.

Mas, dirá você, tudo isso não desaparece quando se alcança esse objetivo? A consciência liberta do ego não deixa para trás todas as limitações humanas, demasiado humanas?

Lembre-se que o Buda morreu cagando sangue.

É um erro supor que a iluminação conduz alguém além da humanidade. Quando muito, ocorre exatamente o contrário. O iluminado é alguém que realizou plenamente a humanidade e que desenvolveu todo o potencial humano que normalmente fica entravado pelas restrições que o ego impõe. O mesmo processo que, do ponto-de-vista da consciência, parece um movimento desta em direção ao Si-mesmo, quando visto da perspectiva do inconsciente, surge como uma encarnação progressiva do Si-mesmo no mundo. Ou seja, não é a consciência que se desumaniza, mas o Espírito que se torna humano. E humano em toda a sua plenitude, abarcando a luz e a sombra, como a árvore de Nietzsche, cuja copa atingia os céus mas cujas raízes mergulhavam no inferno. A palavra perfeito, afinal de contas, significa "completo", e como a consciência pode ser completa se se concentrar apenas nos aspectos luminosos e felizes da existência?

É por isso que o Buda morreu cagando sangue.

por "Malprg".

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Aluízio Vilar disse...

Excelente texto.Releio sempre que possível.